sábado, 20 de novembro de 2010

A graciosidade não vive ali

Eu e a F. temos alguém em comum. Ou tínhamos que, após este desastre, parece-me sensato deixar de me relacionar com a pessoa que nos apresentou.
A F. é excessivamente magra, mirrada. Reparo só agora nisto porque tivesse ficado com uma boa impressão do restante e isso seria irrelevante, apaixono-me por pessoas, não por corpos. Não consigo deixar de a descrever como mirrada por ser algo que adjectiva bem um ser definhado pela inveja com que se pronunciou acerca de figuras públicas que pontualmente vieram à conversa, pela falta de elegância com que se dirigiu ao empregado por ter três e não duas pedras de gelo na bebida e por ter mergulhado as tenazes, dedo médio e indicador, copo dentro para remover o limão e o cubo de gelo a mais. A F., da margem sul, de secundário incompleto e carteira Stradivarius, acha que é sofisticada a falar, tenta fazer voz de rádio embora se note o esforço e crê-se sensual na pose, cruza as pernas de lado inicialmente, depois senta-se em cima de uma dobrada debaixo do rabo. É fácil e reles em cada detalhe, na maneira como fuma, sôfrega e até a procurar ansiosa pelas pastilhas que atira para dentro da boca para disfarçar o hálito. Olha amiúde para o prato dos aperitivos, longe do seu alcance, enervada por ainda não lho terem posto a jeito de poder exibir os dentes, enormes, a partirem cajú com os lábios estendidos em beicinho, convicta na feminilidade do acto, agitando uns dedos cheios de gordura que não limpa discretamente, calcando-os antes no guardanapo que deixa aberto à vista de todos. A dada altura da conversa queixou-se que estava deprimida, porque uma amiga sua se tinha tentado suicidar e que sofria com isso. Aproveitou-se, combalida, de uma situação para chamar as atenções a si, para que lhe passassem mãos no ombro e elogiassem o coração, achei-a asquerosa, ficava-lhe bem o silêncio. Tive oportunidade de ver o pé a soltar-se no calcanhar do sapato. Grotesca. Reclamou por qualquer coisa para comer, fez um trocadilho qualquer de carácter erótico, toda a gente se riu, eu não percebi e não fiz questão que repetisse. Vi-a a aguçar os olhos na minha direcção e receei pela compostura que estava a conseguir manter, não sou de ferro, não fui de ferro quando saímos e fez por caminhar ao meu lado, atirando ao ar qualquer coisa acerca da chuva, desacelerei e esperei pelo restante grupo dizendo-lhe, desculpa mas não sou boa companhia.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Dar a felicidade ao purgatório

Esta noite sonhei que estava despido, os meus poros chamavam vorazmente o frio e nada mais que o frio a si, tortuosos. Eu gelado e tu sem pingo de vida à minha frente mas ainda assim mais quente que eu. Tu serena de olhos abertos e pousados num infinito maior que nunca tive capacidade de sequer idealizar, do qual me contavas coisas que nunca antes ouvira como reais mas que ansiava, para o qual me bastava ter sabido pegar-te na mão, umas vezes apertá-la e noutras confiar que me guiasses. Mas bati-lhe. Aguardei que perante a ameaça se curvasse ao domínio da força cega intransigente. Rebelou-se. Num lance rápido, mais que o que eu imaginaria possível e sem previsão, com a ajuda da mão livre, caiu decepada por um sabre aos meus pés assim que me libertei de uma mão moribunda ao primeiro jorro de sangue. Uma mão aberta que me teria amparado nas quedas e afagado o rosto ao final do dia, a mão que pousou no peito numa noite e me disse "juro que sou tua" a mão que me indicaria o caminho à felicidade, ali a perder-se da vida num chão onde antes dançáramos.

Nunca pensei... quando te dizia que te amava, desconhecia que sequer merecia dirigir-me a ti.

sábado, 11 de setembro de 2010

É areia quente debaixo dos meus pés

Arranquei-lhe menos que o que tinha para lhe dar. Deu-me, arrancados, uns minutos de uma vida que sonhara passada a seu lado. Não foram minutos, apenas o pareceram. A mim que ainda hoje acordo a ouvir-lhe os saltos atrasados para o trabalho. A mim que ainda sinto uma boca feliz de vez em quando, desiludida mais que o que reparara, ausente sem que lhe tenha percebido a partida. Talvez nem nunca tenha chegado, talvez estivesse ainda longe e logo a tenha espantado com este meio jeito de abrir caminho à catanada quando a ela se chegava através de indicações, subtis mas precisas, a um destino ao qual se chega sem esforço e sem suor.

(Deus, porque me fizeste assim? Porque me puseste a ser fogo quando me bastava ter sido água?)

domingo, 4 de julho de 2010

Trago-te na volta

Hoje ao fim da tarde fui correr. Gosto de correr sobretudo porque me liberto de tudo, sem telemóvel, carteira, relógio, nada, mesmo a chave de casa fica num ponto estratégico, vou só eu e a roupa. O impulso do tempo é por vezes mais forte e procuro horas num relógio vazio. Reajo ao barulho dos telemóveis com que me cruzo e variadas vezes jogo a mão ao bolso a pensar na chave. Demoro a conseguir limpar a cabeça dos objectos diários, pelo menos o primeiro quarto de hora em que o cansaço ainda não se apoderou de mim, depois a partir daí começo a pensar menos, o suor torna-se mais denso, o corpo entra noutra mudança, passo a render-me ao ritmo, respiração, esforço, com focar-me no meu objectivo para não me render à exaustão. Prefiro percursos com oscilações de caminho, alcatrão, terra, degraus, íngreme e plano, se não fôr assim aborreço-me e começo a pensar que me apetece fazer outra actividade qualquer. Hoje exagerei no grau de abstracção, mesmo com uma pedra no sapato não a tirei, não recuo perante as dificuldades. Eliminei toxinas, consolidei a minha resistência, aumentei o meu bem-estar, o mais difícil foi voltar para trás, ou bem que há uma barreira arquitectónica ou uma falésia ou quase me esquecia de que há um caminho de volta a percorrer.
A ida é quase insana, faminta, animal e conquistadora.
A volta é mais do mesmo, pesada, triste, desiludida e com uma pedra no pé.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Depressa e bem, há pouco quem

Discordo tanto desse senso comum que diz que uma mulher nos 30 ficou para tia. Hoje podemos afinar a bitola para menos dez anos comparando com gerações anteriores, a vida era dura, obrigava a responsabilidades mais cedo, hoje em dia uma mulher com 28, 29 anos corresponde a uma de 18, 19 de há duas décadas atrás, nos sonhos, na maturidade, nos gostos, na entrega.
Claro que estou a generalizar, se me forem permitidas generalizações neste caso.

Círculo vital

Do que mais gostava em ti, do que não esqueço: o teu umbigo. Olhos destreinados dirão que são todos iguais, não eu que o circundava com os dedos para aceder aos teus risinhos impacientes, não eu que nele mergulhava levado pelas promessas do que uma cicatriz de nascença proporciona dentro de si, não eu que lhe tomei o gosto, o retive na memória e lhe prometi que o meu cordão dele nunca havia de ser cortado.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

As verdades no vinho

Teresa. Fui sair com a Teresa. Conheci-a através de alguém que achou que éramos almas gémeas. A Teresa bebe vinho como se fosse água, fez-me reparar que o vinho passou a ser socialmente obrigatório, sobretudo entre as mulheres. No almoço fez pouco da minha escolha, Compal de pêra com uma pedra de gelo, ria-se frenética desde que fiz o pedido até ao empregado o ter pousado à minha frente, continuou a rir-se perante a minha cara de incredulidade e enquanto me desafiava a beber do copo dela. Elaborou teorias a favor do vinho, teorias contra homens que bebem sumo, teorias de benefícios ao coração, à sexualidade, à boa disposição, à memória, às papilas... tinha ali comigo uma pequena enciclopédia falante e chata, profundamente chata. Ninguém lhe explicou que as certezas absolutas se tornam profundamente passíveis de serem contrariadas, mais atractivas até, e lamentei por ela que não saísse daquele registo, do que a fez sorver uma garrafa sózinha e que para o fim lhe pesava as pálpebras e a deixava de cotovelos colados à mesa. Esqueceu-se de enumerar esse efeito do vinho, mas eu apreendi-o por exemplo, bem melhor que por citação.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Nem a cola mais forte pode refazer o que a dada altura se quebrou

Estou de directa, esta noite não dormi. Não seria grave não dormir pudesse abdicar dos pensamentos que me invadem noite fora, se não ficasse horas a olhar para a chávena de leite que perdeu numa noite de tempestade emocional a sua parceira, a que dizia "amor", parti essa e fiquei com a que diz "eterno". Faz sentido, na minha lógica o eterno. Eterno destroçado, eterno apaixonado, eterno amargurado. Se tivesse ficado intacta a outra, já não havia correspondência possível, só se fosse em amor perdido, amor esgotado, amor-zero, antes assim. Estas chávenas comprou-as ela à falta de variedade no meu pequeno armário em que constam copos, canecas e frascos de compota que nunca uso, mas nada que pudesse acompanhar um pequeno-almoço ou um filme a dois. Fiquei feliz quando as juntei e li "amor eterno", ganhei a mania de as arrumar juntinhas como se só assim fizessem sentido, mesmo quando as deixava a escorrer depois de lavadas, permaneciam juntas. Como se ela fosse uma e eu a outra, sempre juntos. Mas veio o dia em que não me entendia, em que as palavras que me saiam da boca eram serpentes atiçadas, em que o coração mirrou e sumiu e acho que uma rocha tomou o seu lugar... nesse dia, a partir do qual soube que seria sempre a perder, entreguei à parede uma das testemunhas de quão doces eram os seus lábios. Quase ia a outra mas o choque perante os cacos foi maior. Ali fiquei imóvel a vê-los e a pensar que nunca mais as minhas chávenas fariam uma expressão juntas, apenas uma palavra solta e desconexa.
Cacos, ficou tudo bem explicado pelos cacos. A minha vida, sobretudo.

domingo, 30 de maio de 2010

Carpaccio de coração

A maior parte dos meus amigos seguem enfastiados. Demoraram tempo a conseguir entrar no restaurante mais badalado, trabalharam para garantirem a conta paga no fim e esmeraram-se na apresentação a ponto de que, parece-me, com tanto afinco esgotaram a atenção em pormenores que em nada abonam a capacidade de apreciar o mais importante, a refeição. Esta, recuada perante tantos cuidados no que a rodeia, ficou caída entre talheres e sugestões externas. Tornou-se até de difícil digestão quando assumem que esperavam mais. O truque, dizem-me, passa por fingir. Fingir que se degusta o prato como se fosse a última refeição no cárcere de um condenado. Fingir que o pouco é imenso e sobra. Fingir como forma de não permitirem que a cruel realidade lhes exiba a precariedade do que estava para lá da porta que ansiaram.
Discordo deles, sou contra a técnica usada e mesmo sabendo dos olhares reprovadores, como se fosse louco, desafio-os a divorciarem-se.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Não fosse a coragem tão pouca

Ainda que tentasse, nem a troco da minha própria vida conseguiria devolver-te tudo o que nos tirei. Precisava tanto que soubesses disso. Precisava tanto, sobretudo de ti.
Cada vitória minha é uma vitória tua. Só tenho de arranjar forma de tas entregar.

sábado, 10 de abril de 2010

Badbye

Quando no tempo e no espaço mais longe que perto eu estiver, quando no teu peito outros cabelos descansem que não os meus prostrados pelas tuas mãos inválidas pelo desejo que a si os tomaram como veste por entre dedos banhando-os num suor de uma busca que durará enquanto fores viva, quando te afogares numas lágrimas que não as minhas, que te imploram que não partas, que nunca cesses o teu amor, por preferir a morte que a qualquer segundo de vida sem ti, quando isso acontecer, a vontade que te rogo, é que nesses momentos nada mais que a minha voz te ecoe na mente para que assim, ainda que acedendo às vontades de outro, enfeitiçado como eu, seja para mim que respondas, mesmo quando dizes adeus.

E agora diz-lhe adeus. Diz, como me disseste a mim.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Assombração

É assim que me sinto, constantemente asssombrado. Ela não existe, pelo menos no meu mundo, este onde vivo. Está num outro com outras verdades, outras certezas, outros seres que, como ela, se calhar, também assombrarão uns e outros.
Não a ouço. Pelo menos claramente como ouço esta gente que fala ao meu lado, que batem com colheres em louças de café que são de todas as bocas. Eu também sou de todas as bocas, mas não faço barulho de colher. Faço barulho de faca. De uma faca intensa e doida que me varre artérias e as trucida, resiste dentro e só eu sei dela. Quando pára, o único barulho que me deixa é este de que falo, de um risinho feliz pela manhã quando acordava com os meus beijos e se aninhava em mim, toda ela em partes de mim mal sabendo do medo profundo que tinha de a perder. Apenas uma coisa me faz suspeitar que ela não seja um fantasma, este com que a comparo, é a imagem que vejo sua. Não está dissipada como nos folclores em que são descritos. Não. É nítida, tanto que se ousasse chegar-lhe a mão tenho como certeza que a sentiria e só não o faço para não a assustar. Não está habituada a que faça mais que lhe sorrir e inclinar ligeiramente a cabeça sempre que a observo. Por isso não lhe tento tocar, para a não assustar. Nem quando se deita comigo, apenas lhe aconchego cobertores e desejo boa noite.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Não se ama alguém que não ouve a mesma canção

Levei-a a um sítio que só não era um lar na adolelescência por não ter tecto nem paredes e fiz questão de lho referir para que entendesse que era especial para mim levá-la ali. Nada. Não se emocionou, não respirou fundo, não se preocupou sequer em ouvir os barulhos que sempre me haviam sido queridos, os mesmos que eu sabia se perpetuarem ao longo dos tempos não obstante a companhia, a época, eu próprio. Limitou-se a olhar à volta como quem censura a decoração de um bar, a esfregar as mãos escravas do frio e a forçar sorrisos que não lhe impediam um certo esgar de troça como quem diz, é só isto afinal o tal sítio que gabavas, foi para isto que me tiraste de casa, oh como és tolo mas parece-me que te devo agradar e dizer que é giro ou maravilhoso ou alguma palavra simpática que me surja, mas não, não era preciso ter-me tentado iludir acerca de um espaço do qual apenas eu sou servo e auscultador, um sítio onde projectava as minhas esperanças, onde matei sentimentos e ilusões, no qual convidei as energias a não se esquecerem de mim, que estava vivo e queria mais. Como explico que pode o meu corpo correr mundo mas a minha alma está sepultada ali? Como digo que foi à sombra daquelas árvores que descansava a fadiga de quando os meus fantasmas não paravam de me puxar pés, braços, cabelo, numa infinita tentativa de me convencerem de um mundo melhor do lado de lá, nem entenderia, caso explicasse, o quanto do alto daquele monte imenso se sente que se pode ter o mundo e mais uns trocos pelo menos até começar a chover e ter de fazer a conquista num outro dia de sol cúmplice.

Não digo. Não digo mesmo. Não interessa.

E a mim não interessa que lhe interesse ou não.